Michel Cartier vive em Portugal há 18 anos, foi adido cultural da embaixada francesa em Lisboa e lançou um livro, uma espécie de dicionário, sobre "as manias, contradições e características" dos portugueses. Deu-lhe - ele ou a editora - um nome curioso: "Como É Possível Ser Português?".
Vejo-o no noticiário da manhã da TVI, calhou passar pelo canal esta manhã. A falar um português esforçado, de fato e gravata, Cartier acaba por não se conseguir explicar convenientemente ao jornalista. Tem dificuldade em responder às perguntas directas que lhe são feitas - "Mas vamos a exemplos práticos de manias dos portugueses". O francês remete para as 365 entradas que o seu dicionário tem, uma para cada dia do ano. A custo, lá diz que os portugueses têm muita conversa e bla bla bla. Refere Fernando Pessoa uma e outra vez, mas não me aquece nem arrefece.
É o título da sua obra que me afasta. "Como é possível?" Eu respondo-lhe sem rancores, senhor Cartier. É possível com orgulho e sem preconceito. Não sei se reparou, mas provavelmente o seu tiro editorial foi dado ao lado. Não é este o momento para se meter com estes homens e mulheres que, como referiu na apresentação do seu dicionário, "se não existissem teriam que inventá-los".
A economia portuguesa está no lixo, mas a essência de cada um de nós não. Sim, temos muita conversa. Sim, gostamos demasiado de futebol, choramos com o fado, deliramos com um almoço prolongado, bebemos uns copos a mais, estoirámos (ou será alguns de nós estoiraram?) os subsídios europeus e agora estamos com a corda na garganta. Temos esses e muitos mais defeitos, 365 ou mesmo mais, mas felizmente temos uma das políticas de integração de estrangeiros mais bem conseguida de todo o mundo.
Veja bem, caro Cartier. Somos tão bons a receber, que até o temos por cá a escrever livros sobre os nossos hábitos culturais e enquanto povo. É possível ser português. Não só é possível, como é bom. E difícil, mas já andamos cá há muito tempo. Temos muita coisa para mudar para sermos melhores, mas temos ainda mais coisas para preservar para podermos continuar a ser bons.