Porquê? Why?

Há histórias que têm que ser contadas.
Há exemplos que têm que ser seguidos.
Há personagens que têm que ser desvendadas.
E nós merecemos um jornalismo diferente que nos mostre que ainda vale a pena.



07/05/08

CADA UM TEM O QUE MERECE


À nossa, tio!

José e Laura deixaram Portugal no início do século XX. Estava-lhes no sangue a aventura, o desejo de ter uma vida melhor fora de um país que nem sempre os tratou bem. Entraram num barco e rumaram à América do Sul quando pouca gente pensava em fazê-lo. Na Argentina tiveram um filho. No Uruguai, outro. No Brasil, mais dois. E voltaram a Portugal, 15 anos depois para ter o último filho do casal. Lacier, Heitor, Josué, Arquimedes e Adelino. Por esta ordem.

De Córdoba a Montevideu , de São Paulo a Setúbal, a terra-mãe. Já na Europa, e com os filhos mais velhos a atingir a maioridade, chega a notícia do serviço militar. Tinham que o cumprir nos respectivos países. E a família Matias começou a separar-se. Mas só fisicamente.
Lacier voltou à Argentina, entrou para a Força Aérea, ultrapassou todas as fases, chegou aos postos mais elevados. Casou, teve três filhas - Laura, Inês e Alice - e tornou-se próximo de quem só se ouve falar nos livros de História. Evita e Juan Perón estavam no auge e partilhavam as suas gargalhadas com ele.

Cada vez que os irmãos e as respectivas famílias se reencontravam, fosse no Brasil ou em Portugal, não havia política à mesa. Só as histórias de sempre, as intermináveis sessões de cartada. À frente da mesa de 'crapô', com todas as cartas dispersas ou alinhadas, ele olhava para mim e dizia orgulhoso, no seu português sul-americanizado que teimava em não esquecer: "Capablanca, Capablanca". Era a sua referência, o famoso jogador de xadrez a quem tinham analisado o cérebro e descoberto potencialidades sobre-humanas.

Os dedos das mãos começavam a fechar-se. A atrofia dos tendões é a orgulhosa doença dos homens desta família. Os dedos uns sobre os outros, dobrados, quase que formando um círculo. "Não há problema. Tem o formato perfeito para o copo". E era mesmo verdade. Fosse de vinho branco ou de ginjinha, tinha sempre um copo na mão. Ajustava-se a ele.

Já depois dos 85 anos saíu de casa das filhas, para onde tinha ido morar depois de um segundo casamento que tinha chegado ao fim. Foi viver com um dos netos. Nessa altura, enviava-me emails. Tinha descoberto a internet. Continuava a fazer os seus inúmeros passeios a pé, sempre ligeiramente curvado para a frente, com os braços e as mãos atrás das costas. Sempre em passo rápido e miudinho.

O tio-avô Lacier morreu ontem, quase a chegar aos 92 anos. Se o São Pedro existir, deve estar com os portões escancarados. É que, como ele dizia - mais por graça do que por convicção - "já devo muitos anos ao Senhor". E ria-se com os olhos, afastava-se até à cozinha e enchia o copo mais uma vez para depois voltar com outra história mirabolante.

8 comentários:

Anónimo disse...

BOA RICARDO ESTA SIMPLES E LINDO.BJS.BE

Ricardo Santos disse...

Obrigado, tentei que fosse como ele, simples.

Anónimo disse...

Olá Ricardo
Só agora descobri o teu blog, mas quero dar-te os parabens pela forma como homenageastes essa figura impar com a qual tive a grata felicidade de conviver e por diversas vezes, homem simples, culto, cidadão do mundo que tinha grande paixão por Setúbal. O titio argentino ficará sempre na minha memória, um abraço do primo João

Ricardo Santos disse...

Obrigado João. É bom ver-te por cá. Vai aparecendo e dando sugestões, fazendo críticas. Abraços!

Anónimo disse...

Olá, Ricardo.
Só hoje soube do teu blog.
Quero-te dar os parabêns, está lindo, simples á tua imagem só quêm te conhece bem. A homenagem ao teu tio está simplesmente maravilhosa, como os momentos que tivemos oportunidade de partilhar com ele. Ricardo, como sempre, cabeça erguida, em frente é que é o caminho.Muitas felicidades na tua carreira e na tua vida particular, sê FELIZ.Já tenho saudades tuas e de uns fritos de cenoura....Um grande abraço e muitos beijinhos.

Ricardo Santos disse...

Obrigado Dulce. Sempre em frente!
Está a chegar a época dos sonhos de cenoura. Beijos

Anónimo disse...

Fui logo descoberta.
Aparece.Muita força.Não tenho companhia para os sonhos..... só na almofada.
Beijocas.

Anónimo disse...

Obrigado por Blog intiresny