Porquê? Why?

Há histórias que têm que ser contadas.
Há exemplos que têm que ser seguidos.
Há personagens que têm que ser desvendadas.
E nós merecemos um jornalismo diferente que nos mostre que ainda vale a pena.



20/06/10

José Saramago 1922-2010

Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde

Subo a Rua Morais Soares, engalanada mais com bandeiras da selecção brasileira que com as das quinas. O movimento é o de sempre, cosmopolita, intenso, ruidoso. Faz sol, está calor, a praia convida. Passo a renovada Praça Paiva Couceiro, com o jardim menos cheio de idosos a jogar à batota e mais completo de pais e filhos a jogar à bola. É domingo, 20 de Junho.

O muro do cemitério do Alto de São João já me faz companhia do outro lado da estrada. Sigo pela sombra, peço licença para passar, olho para as janelas dos primeiros e segundos andares, onde os cotovelos dos casais já estão apoiados, à espera. Dos cafés e restaurantes pelo caminho saem os sons das transmissões em directo da SIC Notícias e RTP-N.

A florista quase em frente ao portão principal do cemitério está aberta. É normal que assim seja, os domingos são bons para o negócio. Aos domingos, há quem se lembre mais dos familiares mortos e enterrados. "São 50 cêntimos cada cravo", diz-me a florista de origem africana. Só preciso de um, vermelho. Obviamente. Solícita, envolve a ponta do caule com prata. "Deixe estar, os cravos não têm espinhos". Especialmente os vermelhos.

À beira da estrada, algumas dezenas de pessoas esperam pelo Prémio Nobel da Literatura de 1998. No interior do cemitério, as alas estão abertas. São centenas de homens e mulheres. Trazem roupas escuras, mas não ao género das carpideiras, óculos de sol e livros na mão. Não fui o único a pensar no cravo vermelho. Ainda bem.

Os jornalistas atropelam-se, fazem directos, procuram a melhor fotografia, interpelam políticos e anónimos, preenchem a emissão. O helicóptero já sobrevoa o Alto de São João e começam a ouvir-se as primeiras palmas. O tom sobe à medida que o carro fúnebre avança. Passa o portão principal e os aplausos tornam-se cada vez mais fortes.

O caixão é transportado ao ombro, Pilar e Violante, mulher e filha, seguem atrás. O cordão policial deixa de fazer sentido, o povo saiu à rua e quer despedir-se dele. Sem atropelos, sempre sob os aplausos dos seus amigos, familiares, seguidores e fãs, José Saramago dá entrada na antecâmara do forno crematório. Aí, só os mais chegados ouvem as últimas palavras de Pilar antes de o corpo se transformar em cinzas e a alma passar a ... sabe-se lá o quê.

Cá fora, não se parou de aplaudir. "Saramago, a luta continua", grita-se. Pilar termina o elogio fúnebre e o caixão segue para a cremação. Aumentam as palmas. Não há espaço para corvos paramentados com cruzes, missas pagas com 30 dinheiros e promessas de vida eterna num céu que ninguém provou que exista.

Dez segundos de fumo marcam o final da despedida.
Descansa, Saramago, o fumo que saiu da chaminé não é branco.
É cinzento, como o Mundo que deixas.
Um Mundo que ficou ainda mais cinzento sem ti.