Porquê? Why?

Há histórias que têm que ser contadas.
Há exemplos que têm que ser seguidos.
Há personagens que têm que ser desvendadas.
E nós merecemos um jornalismo diferente que nos mostre que ainda vale a pena.



03/02/12

Crónica de Janeiro na Volta ao Mundo

Desde o início do ano, tenho o prazer de partilhar com a escritora Raquel Ochoa e o jornalista Ricardo J. Rodrigues, uma dupla página de crónicas na revista para viajar mais lida em Portugal, a Volta ao Mundo.
Nada a Declarar foi o nome escolhido para esta secção onde contamos histórias, percalços e imprevistos das nossas viagens um pouco por toda a parte. Todos os meses escolhemos um tema comum e começámos por "Como os portugueses são vistos lá fora". Espero que gostem.


                                          Ilhas Galápagos, Equador

Barquinho de Babel

Éramos doze. Num barco.
Quatro cabinas para oito passageiros e uma camarata para três tripulantes e um guia. À volta, a terra não se avistava. Só a noite escura e o mar negro das ilhas Galápagos.
E um motor que não funcionava.
Seria perto da uma da manhã. O barco estava à deriva.
Uma japonesa, uma inglesa, dois suíços, um par de holandeses e uma dupla de portugueses. Quatro equatorianos completavam o plantel. Um deles estava na água, emergindo e submergindo, com máscara, tubo e uma chave de fendas. Ia por tentativas, procurava a peça certa para desapertar.
El Comandante, o líder da embarcação, dava instruções. «Está tudo bem», dizia Freddie, o guia. «Podem dormir descansados, em pouco tempo estará a funcionar.» E o barco à deriva.
A japonesa não falava espanhol. Inglês pouco e francês nem pensar. A inglesa não se aventurava mais do que para dizer «No tengo mas hambre» quando o estômago se enrolava nas voltas da ondulação. Os suíços falavam francês entre eles e inglês com os restantes. Os holandeses tinham, como seria de esperar, a mesma perfeição no inglês e no idioma próprio. Em português sabiam dizer «pão de queijo». Tinham chegado do Brasil... Nós, os portugueses, estávamos à vontade em todas as línguas do barco. Mesmo no japonês arriscávamos a comunicação, à base de Arigatos, Sayonaras e Pizzicato Five. Em holandês era mais complicado, mas Cruyff, Van Basten e Ruud Gullit quebraram o gelo.
«Diz-lhes que está tudo bem», dizia-me Freddie, que dava os primeiros passos no inglês. Já lhe fazíamos as traduções simultâneas sempre que precisava explicar a história das ilhas, as espécies endémicas, as precauções a ter naquele santuário da natureza. Nos briefings diários, era a nós que perguntava como se dizia isto ou aquilo, em francês ou inglês.
Cumpríamos o nosso legado histórico de intermediários culturais. Era connosco que, em espanhol, partilhava as histórias sem censuras linguísticas ou temáticas. Éramos já dois deles. Suficientemente cúmplices para perceber que não estava tudo bem, que estávamos à deriva, a afastar-nos da rota. Até que o motor voltou a funcionar.
«Éberything ólright!», exclamou Freddie com um sorriso enquanto nos piscava o olho.