Porquê? Why?

Há histórias que têm que ser contadas.
Há exemplos que têm que ser seguidos.
Há personagens que têm que ser desvendadas.
E nós merecemos um jornalismo diferente que nos mostre que ainda vale a pena.



25/11/10

Malta que não interessa a ninguém

Os jornalistas são, provavelmente, os seres menos solidários que existem no panorama laboral português. Vou excluir deste universo os juízes, políticos e advogados porque estou apenas a falar da população activa.

Como dizia, se há classe profissional que se está a marimbar para os colegas, é a dos jornalistas. E deste ramo, onde me incluo, fazem parte redactores e fotógrafos, os 'canetas' e os 'bate-chapas'.

Dois exemplos:

- Se um redactor escreve uma peça do caraças, com uma investigação árdua, um tema pungente e uma retórica cativante, só vai receber dois tipos de elogios - os genuínos (dos seus verdadeiros amigos pessoais que também são jornalistas) e os de circunstância (de jornalistas que se dizem seus amigos, mas só escrevem ou fotografam para o umbigo e criticam tudo o que lhes possa fazer sombra).

- Na semana passada fui a um lançamento de um livro que tinha também uma exposição de fotografia, óptima, diga-se de passagem. As fotos são de um foto-jornalista português. Sabem quantos fotógrafos estavam lá presentes? Vi apenas um para lá dos que foram cobrir o lançamento do livro. 

Redactores e fotógrafos têm, de modo geral, os egos demasiado inchados. 
Julgam que, por aparecerem nas páginas de jornais e revistas, ecrãs de televisão ou através da rádio, estão acima de qualquer crítica. Pensam que os elogios para os trabalhos dos outros são uma demonstração de fraqueza e das suas próprias limitações.

Enganam-se.
Elogiar o trabalho de um colega, quer se conheça ou não pessoalmente, é um acto de solidariedade. Tal como é o de criticar negativamente uma peça ou uma imagem. Isto se a crítica for baseada em factos e não apenas na dor de cotovelo, no umbigo ou à luz do grupinho de iluminados de que se faz parte. 

Deixo um conselho aos meus amigos jornalistas: diversifiquem o âmbito das vossas amizades. Fica mais fácil manter contacto com o mundo real.

23/11/10

Foi bom, não foi?

Vi em rodapé televisivo, ouvi na rádio, li no jornal, procurei na Internet e pensei: "Será que é mesmo verdade?" A questão fazia todo o sentido. Pelo menos, para mim.

Por um lado queria acreditar que, finalmente, um líder espiritual dos católicos tinha dito alguma coisa acertada em relação ao preservativo e ao seu uso. Afinal, já passaram mais de 3000 anos (exacto, três mil) desde que os egípcios começaram a usar algo semelhante ao preservativo na protecção contra as doenças sexualmente transmissíveis. Depois das tripas de animais, das faixas de tecido ou das protecções de couro, o preservativo em látex, tal como o conhecemos, surgiu. Já foi na década de 1950, mas mesmo assim não havia meio de um Papa assumir a sua importância na luta contra doenças terríveis. Seja ela a sífilis ou aquela outra que todos os anos ajuda a matar milhões - e infecta muitos mais - em todo o Mundo. Como é que aquilo se chama mesmo?...

Sida. É isso.

Pois... Tentei informar-me melhor sobre as declarações revolucionárias de Bento XVI. Então, mas o homem nunca disse uma palavra acertada sobre o assunto e agora, de repente, o preservativo já é uma coisa mais ou menos boa? Hummm... cheirou-me a esturro. E não é que estava certo?

Já hoje, um porta-voz do Vaticano veio explicar melhor a coisa. Veio quase que assustado, depois de ver tantas boas reacções às palavras progressistas e inteligentes da sua -dele- Santidade.
E rectificou.

Afinal, o Papa não quis dizer que o preservativo deve ser usado a torto e a direito (não resisti...).
Só pode ser utilizado em casos excepcionais e como medida de protecção, podendo reduzir o risco de infecção. Deu, Bento XVI, o exemplo dos "prostitutos". Não o dos trabalhadores da prostituição em geral, só eles. Quanto a elas, não foram especificadas medidas de protecção.

E fiquei também a saber que, no livro de onde teriam sido sacadas as progressistas e inteligentes afirmações de Bento XVI - Luz de Deus: O Papa, a Igreja e os Sinais dos Tempos, está também escrito: "Os preservativos não são a melhor forma de lutar contra o mal da sida".

Em Julho de 1920, quando Joseph e Maria Ratzinger, futuros pais do petiz Joseph, se conheceram (dizem as más-línguas, através de um anúncio de jornal), não sabiam ainda que o preservativo poderia ter outra função além de salvar vidas: evitá-las.

16/11/10

Carlos Teotónio Pereira

                                                                         O Independente, 2001

Acordei sobressaltado.
Pouco passava das nove da manhã, talvez menos. Estava a dormir há três ou quatro horas.
"Tou, Ricardo... tenho uma coisa muito triste para te dizer. O Carlinhos faleceu".
Nem teve um acidente, nem está muito mal, nem houve um desastre, nada. Não! Faleceu. Morreu.
Pá!
Chapada na cara, murro no estômago, puxar o tapete, desabar o Mundo, todas as frases feitas são ridículas. Não havia outra maneira de o dizer, não há forma correcta de se dar uma notícia assim. Não se deseja a ninguém ter que o fazer. Dizer a alguém que um dos seus melhores amigos já não está vivo é um pontapé nos tomates. Anos mais tarde, calhou-me a dor de ter que dizer a um pai que o filho tinha morrido.
Não há forma correcta de se dar uma notícia assim. Não se deseja a ninguém ter que o fazer.

Em 2002, gastávamos as recentes e escassas notas de euro que recebíamos em noites de fecho do jornal que se prolongavam quase até de manhã. O Mundo tinha mudado: Bin Laden era o inimigo público número um, Daniel Pearl, do Wall Street Journal, tinha sido sequestrado e barbaramente assassinado, Milosevic estava a ser julgado em Haia, Savimbi deixara de ser um problema em Angola, Timor acabava de se tornar independente, Lula conseguira finalmente chegar ao poder e os EUA invadiam o Afeganistão.
De tudo isto falámos à mesa da Tasca do Careca, nos almoços no Beiradouro ou nas escapadelas para as escadas de incêndio do prédio da Almirante Reis. Sempre com opiniões contrárias e discussões acaloradas que terminavam em gargalhada. Terminavam com a gargalhada dele.

Ele e eu éramos água e azeite. Tínhamos tudo para não nos misturarmos e conseguimos iludir a química ou a física ou lá o que é que separa os líquidos. De um lado, uma educação católica, conservadora, de Direita, do antigamente, uma família influente. Do outro, eu.
Unimo-nos por uma secretária, por um computador, pelo prazo de fecho, pelos caracteres para entregar, pelas tricas da redacção, pelas conquistas do coração, pelas loucuras até às tantas, por uma amizade sem classes, pura.

"A ver se combinamos alguma coisa esta semana..."
"Claro, meu querido!"
E mais umas gargalhadas valentes com insultos terríveis à masculinidade um do outro.
"Liga-me".

Nunca mais lhe telefonei. Não houve tempo.
Não consigo apagar o número da memória do meu telemóvel - Carlinhos Teot: 919302571.
Passam hoje exactamente oito anos.
Em 2002, o Óscar de Melhor Filme foi para A Beautiful Mind.
Bate certo.



28/10/10

Eu é que sou o capitão da minha alma

Gosto de épicos.
Filmes, livros, biografias, histórias, heróis, momentos, recordações, pessoas, amores.
Gosto de momentos como o do discurso do treinador interpretado por Al Pacino no filme 'Any given Sunday'.
Gosto do Humphrey Bogart a despedir-se de Ingrid Bergman em 'Casablanca'.
Gosto de reviravoltas históricas como a do Manchester United contra o Bayern de Munique na final da Liga dos Campeões ou a defesa do Ricardo sem luvas no Euro 2004.
Gosto da emoção que senti no cemitério do Alto de São João quando passou o que sobrava de José Saramago.
Gosto de palmas que não acabam e beijos que ficam para sempre.
Gosto do 'Wish you were here' dos Pink Floyd a tocar alto no rádio.
E do 'Learning to fly' do Tom Petty.
Gosto da águia Vitória a voar antes dos jogos.
Gosto de uma história que acaba bem.
Tenho saudades das duas madrugadas e um dia de resgate dos mineiros chilenos.
Arrepio-me quando oiço o cometa a passar no 'Whole of the Moon' dos meus Waterboys.
E gosto de mensagens fortes.
Como esta.

Invictus,
by William Ernest Henley



Out of the night that covers me,
Black as the pit from pole to pole,
I thank whatever gods may be
For my unconquerable soul.
In the fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.
Beyond this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds and shall find me unafraid.
It matters not how strait the gate,
How charged with punishments the scroll,
I am the master of my fate:
I am the captain of my soul.

30/09/10

Corta e cose

Hoje, andei trinta e tal anos para trás.
Uma pequena cirurgia levou-me a um hospital. 
Foi agendada a semana passada e hoje começou com meia hora de atraso. 
Sim, foi num hospital privado. 

Nem 20 minutos estive deitado. Nem as calças ou os ténis tive que tirar. Só levei a touca na cabeça e as protecções para os pés. Já ia medianamente anestesiado de casa - não é nenhuma piada com álcool, eram dez da manhã - com uma pomada para passar na área afectada. Deitei-me, ele passou-me um spray desinfectante, depois Betadine e saca da agulha: "Lembra-se que eu disse que era só uma picada?", perguntou. 
Sim, disse-lhe.
"É esta", continuou enquanto me picava a pele em vários locais. Virou-se para trás, pediu para preencherem uns papéis, clamou por um bisturi, trocou meia dúzia de palavras com as enfermeiras e com a médica assistente e voltou à carga: "Isto assim, dói-lhe?" 
Não, disse-lhe enquanto fitava o típico candeeiro sobre a mesa de operações, parecido com o do dentista, mas maior. Foi isso que me fez voltar trinta e tal anos atrás.

Devia ter uns três anos ou coisa assim. Brincava num canteiro de flores sem as ditas, só com terra. Era em mármore e ainda hoje faz a divisão entre os prédios na rua dos meus pais, na praceta com nome de poeta que me ajudou a vir para as Letras. Tropecei, caí e parti a cana do nariz na esquina do mármore. Doeu. E só me lembro das luzes, do candeeiro do hospital, da agulha e do fio a passar do lado esquerdo para o direito do nariz. Foi a última vez que estive num hospital para ser cosido. Até hoje.

Não pensei no papel do Serviço Nacional de Saúde. Não me importei com isso. Felizmente tenho um seguro que me permitiu ser consultado e intervencionado por menos de 60 euros. Tenho sorte. Levou uma semana. Daqui a outra volto lá para uma consulta de pós-operatório.

"Pronto, Ricardo, já está", diz-me ele depois de ter dado uns quantos pontos na pele e de termos falado do aumento do IVA para 23% ao ritmo do fio e da agulha. "Então e essas férias?", perguntei-lhe. "Agora estou a pensar em Bali". Na semana passada, quando nos vimos pela primeira vez, questionou-me sobre as Maldivas. Disse-lhe que era melhor não, a não ser que fosse praticante de mergulho e quisesse passar uma semana romântica.

Um dia, o Serviço Nacional de Saúde não vai ser assim.
Mas era bom que fosse.

24/09/10

Falta de Luz

Tenho aqui duas notícias que gostaria de partilhar.
Uma é dos últimos dias de Julho deste ano.
A outra é desta semana, final de Setembro.

A primeira, in Correio da Manhã, rezava assim:


Lucro da EDP sobe 19% no primeiro semestre

O lucro da EDP subiu 19 por cento no primeiro semestre deste ano, face aos mesmo meses do ano anterior, para 639 milhões de euros.
A segunda está fresquinha, in Jornal de Notícias:

EDP vai pedir autorização para donativo voluntário na factura da luz

A empresa portuguesa anunciou hoje que vai pedir aos seu clientes que, voluntariamente,  contribuam com quatro euros anuais ou 30 cêntimos por mês para ajuda aos refugiados da ONU.


Pois bem, vamos lá por partes.
Eu não tenho nada contra os refugiados da ONU. Nada de nada! E tenho a certeza que merecem ser ajudados de todas as formas possíveis.

Só deixo uma questão: uma empresa que tem lucros de 639 milhões de euros no primeiro semestre do ano precisa de pedir mais quatro euros aos seus clientes para poder fazer boa figura e ajudar os refugiados?

Se os 10 milhões de portugueses e residentes em Portugal fossem todos clientes da EDP, a quatro euros cada um, isso significaria um donativo de 40 milhões, certo? E se esses 40 milhões saíssem directamente dos 639 milhões do lucro semestral? 







17/09/10

Precariedade intelectual

Hoje apetece-me discutir uma das grandes questões deontológicas do jornalismo.

Esqueçam o segredo de justiça, a protecção das fontes, a utilização de fontes anónimas, a subjectividade versus imparcialidade ou as notícias encomendadas pelos assessores de imprensa de ministros ou administradores de grandes empresas.Vamos colocar de lado o papel menor que é dado aos estagiários nas redacções, a sua falta de acompanhamento, a rara intervenção do Sindicato para a melhoria das condições de trabalho da grande massa humana que enche páginas ou horas de emissão dos jornais, revistas, rádios e televisões de Portugal. Vamos também deixar passar em branco o papel da Internet na comunicação social, a pujança dos sites e o facto de estarem sempre à frente nas 'Breaking News', o poder dos blogs e a relevância dada aos comentaristas no universo televisivo.

Hoje apetece-me mesmo discutir uma das grandes questões deontológicas do jornalismo:

- As ideias roubam-se?

Se numa conversa entre amigos jornalistas, alguém pensar numa bela história e verbalizá-la, essa pessoa é dona do artigo? Quanto tempo devemos esperar até que ele ou ela a ponha em prática? E se ele ou ela 'engonharem' e não fizerem nada daquilo? Temos ou não o direito de avançarmos nós com isso?

Bem... vou voltar ao trabalho e já penso melhor nisso.
Tive agora mesmo uma ideia do caraças para uma história.

Schiuuu.


05/08/10

Não vou de férias no Verão

São Jorge, Açores

Julho e Agosto são os melhores meses do ano para quem trabalha por conta própria nesta área do jornalismo e da escrita a metro.

É nesta época que as redacções se esvaziam de pessoas, de massa crítica e de ideias. Vai daí, deixa cá aproveitar o que os freelancers têm para oferecer.

Mas afinal, o que temos nós para oferecer que os outros não têm?
É simples. As nossas ofertas são menos dois meses de ordenado por ano (subsídios de férias e de Natal, bye, bye), nenhuns descontos para a Segurança Social, reduzidas contas telefónicas a partir das redacções, não gastamos electricidade da empresa porque trabalhamos em casa e queremos trabalhar.

Sim, queremos mesmo. Eu, pelo menos, quero.

Houve tempos em que estive em redacções, ganhava os 14 ordenados mensais, sempre a tempo e horas, a empresa descontava tudo certinho, tinha horas para entrar e horas para sair, pausas para cafés e cigarros, hora e meia de almoço e tempo suficiente para coçar a micose - curiosamente, nunca sofri desse mal, mas se tivesse sofrido, teria tido tempo para coçá-la.

Hoje não. E o hoje já são mais de dois anos e meio. Hoje levanto-me muito mais cedo que a maior parte dos meus colegas que trabalham em redacções e deito-me igualmente mais cedo que a maioria deles. A explicação é simples: gosto de escrever de manhã, perdi o gosto pela escrita à noite, essa visão romântica que jornalistas e escritores tanto gostam de exultar: Ai, o silêncio da noite, bla, bla...
Merda de boi, como dizem os americanos.

Pois hoje trabalho muito mais do que antes. Sim, recebo um pouco mais, mas também me dou ao luxo de recusar trabalhos que não me agradam. Se tenho que fazer fretes, pelo menos que sejam bem pagos. Claro que o mundo não é cor-de-rosa, mas cá se vai andando com a cabeça entre as orelhas.

Onde é que eu ia?... Ah, deito-me mais cedo que a maioria dos meus colegas. Pois, é verdade.
Não participo de forma regular em jantaradas corporativas, não frequento os espaços do métier para ver e ser visto e não gosto de falar sobre as grandes correntes do jornalismo. Da mesma forma, também não me desgraço em noites de semana, nem faço por conhecer quem interessa nas diversas publicações, gente que me poderia ser muito útil para ter ainda mais trabalho.

Não tenho nada contra quem o faz, são opções.
Eu prefiro deitar-me a horas decentes e acordar de manhã para trabalhar.

Neste Verão, continuo disponível para trabalhar enquanto os outros gozam férias.
A cidade é só para mim, a ânsia de encher páginas faz com que quase todas as ideias sejam aceites e a capacidade de produção aumenta com o calor.
Mas... e há sempre um mas... não abusem.

Há limites para tudo e um tipo lá por ser freelancer não quer dizer que ande com as calças em baixo.

À vontade não é à vontadinha.

20/06/10

José Saramago 1922-2010

Tarrafal, ilha de Santiago, Cabo Verde

Subo a Rua Morais Soares, engalanada mais com bandeiras da selecção brasileira que com as das quinas. O movimento é o de sempre, cosmopolita, intenso, ruidoso. Faz sol, está calor, a praia convida. Passo a renovada Praça Paiva Couceiro, com o jardim menos cheio de idosos a jogar à batota e mais completo de pais e filhos a jogar à bola. É domingo, 20 de Junho.

O muro do cemitério do Alto de São João já me faz companhia do outro lado da estrada. Sigo pela sombra, peço licença para passar, olho para as janelas dos primeiros e segundos andares, onde os cotovelos dos casais já estão apoiados, à espera. Dos cafés e restaurantes pelo caminho saem os sons das transmissões em directo da SIC Notícias e RTP-N.

A florista quase em frente ao portão principal do cemitério está aberta. É normal que assim seja, os domingos são bons para o negócio. Aos domingos, há quem se lembre mais dos familiares mortos e enterrados. "São 50 cêntimos cada cravo", diz-me a florista de origem africana. Só preciso de um, vermelho. Obviamente. Solícita, envolve a ponta do caule com prata. "Deixe estar, os cravos não têm espinhos". Especialmente os vermelhos.

À beira da estrada, algumas dezenas de pessoas esperam pelo Prémio Nobel da Literatura de 1998. No interior do cemitério, as alas estão abertas. São centenas de homens e mulheres. Trazem roupas escuras, mas não ao género das carpideiras, óculos de sol e livros na mão. Não fui o único a pensar no cravo vermelho. Ainda bem.

Os jornalistas atropelam-se, fazem directos, procuram a melhor fotografia, interpelam políticos e anónimos, preenchem a emissão. O helicóptero já sobrevoa o Alto de São João e começam a ouvir-se as primeiras palmas. O tom sobe à medida que o carro fúnebre avança. Passa o portão principal e os aplausos tornam-se cada vez mais fortes.

O caixão é transportado ao ombro, Pilar e Violante, mulher e filha, seguem atrás. O cordão policial deixa de fazer sentido, o povo saiu à rua e quer despedir-se dele. Sem atropelos, sempre sob os aplausos dos seus amigos, familiares, seguidores e fãs, José Saramago dá entrada na antecâmara do forno crematório. Aí, só os mais chegados ouvem as últimas palavras de Pilar antes de o corpo se transformar em cinzas e a alma passar a ... sabe-se lá o quê.

Cá fora, não se parou de aplaudir. "Saramago, a luta continua", grita-se. Pilar termina o elogio fúnebre e o caixão segue para a cremação. Aumentam as palmas. Não há espaço para corvos paramentados com cruzes, missas pagas com 30 dinheiros e promessas de vida eterna num céu que ninguém provou que exista.

Dez segundos de fumo marcam o final da despedida.
Descansa, Saramago, o fumo que saiu da chaminé não é branco.
É cinzento, como o Mundo que deixas.
Um Mundo que ficou ainda mais cinzento sem ti.

25/03/10

Ao menino e ao borracho, põe Deus a mão por baixo

Já há alguns posts que não enveredava pelos tortuosos caminhos do Senhor.

Estava aqui sossegado a pensar se a Terra seria mesmo redonda, se o Giordano Bruno mereceu ser queimado vivo, se os braços cruzados da grande maioria da Igreja Católica fizeram sentido durante a II Guerra Mundial e constatei que o melhor era deixar-me disso.

Até consegui ir mais longe.
Concluí que uma religião não pode ser atacada por causa dos homens que a dirigem. Como constataram não disse "homens e mulheres que a dirigem" porque as mulheres não podem dirigir a Igreja Católica, foram e continuam a ser vetadas. Isto, apesar de o maior número de seguidores da fé católica ser do sexo feminino. Mas esse é outro assunto e não gostaria que pensassem que estou para aqui a implicar com o Vaticano de forma gratuita.

Então... onde é que eu ia?
Pois, estava para aqui com estes pensamentos anti-clericais - a pensar que estaria a exagerar - quando, sem estar à espera, fiz uma ronda pelas notícias do dia e deparei-me com uma pérola do Cardeal José Saraiva Martins ao Jornal de Notícias.

O responsável pela congregação para a Causa dos Santos, afirmou que "os recentes casos de pedofilia envolvendo padres católicos têm vindo a público como parte de uma «maquinação» pensada para atacar a Igreja." E diz mais: "Não digo que seja a maçonaria ou qualquer outro grupo, só digo que existe uma maquinação, um objectivo muito preciso, bem claro, para atacar a Igreja".

Hã?

Continuei a ler mais um pouco para tentar perceber onde é que o senhor queria chegar. E Saraiva Martins continuou: "99 por cento dos sacerdotes católicos apresenta um comportamento sério, sendo, por isso, «injusto», apresentá-los «como se fossem todos» pedófilos."

'Tá certo.
Não são todos. São alguns.
Tais como os homens que não usam saias nem dizem a missa. Também os há pedófilos. Talvez 99% por cento não seja, mas há-os. E sempre que são apanhados ou condenados os seus casos são divulgados de forma transparente na comunicação social. Por isso, por que razão é que, quando se fala de padres católicos pedófilos, não se podem chamar os bois pelos nomes sem que venha logo uma acusação de - como é que ele disse? - maquinação?

Não vou perder mais tempo nem gastar o vosso.
Não se pontapeia um moribundo.

18/03/10

Bullying é coisa de mariquinhas

O Fifi era um dos terrores da Escola Comercial.
Naquele oitavo ano, em meados dos anos 80, não havia dia em que ele não aprontasse alguma.

Começou a fumar antes de todos os outros colegas, bebia cerveja ainda nós sonhávamos com Green Sands e estava constantemente a ser posto na rua por mau comportamento.
Tinha cabelo à tigela e uns óculos que lhe ocupavam a cara. O corpo era o de um miúdo gordo, tinha tudo para ser o bombo da festa, mas quem comandava a orquestra era ele. Se havia pancadaria, o Fifi estava presente. Dava-se com os repetentes, metia-se com os mais novos, gozava com as miúdas, deixava-as a chorar.

O fim do ano lectivo estava a chegar, o calor era suficiente para ir à praia. Combinou-se um almoço fora da escola, na Adega dos Passarinhos, uma taberna a 200 metros da escola, no tempo em que as autoridades não impediam essa proximidade. Comiam-se bifanas e bebia-se cerveja. Depois fomos para as aulas.

O Fifi quis ir mais longe, queria sempre. Pediu aguardente de medronho. Poucos lhe seguiram o exemplo.

Nessa tarde, na aula de Biologia, a stôra quis fazer uma revisão da aula anterior. Fifi não gostou da ideia e resolveu apresentar argumentos contraditórios: vomitou em cima da carteira, no chão da sala e foi levado para o posto médico. Acabou suspenso pelo Conselho Directivo.

Há um par de anos encontrei-o.
Estava de fato e gravata, com os quilos a mais que os 30 anos nos dão.
O sorriso era o mesmo, os óculos já não lhe ocupavam a cara toda.
"Fifi!", gritei-lhe. Espantado, olhou para trás e caminhou em direcção a mim.
"Há anos que não me chamavam isso". E riu-se enquanto me deu um abraço.
O Nuno Gonçalo é casado, vende automóveis, tem um ou dois filhos (já não me lembro, sinceramente) e era o terror da Escola Comercial.

Dei-lhe um palmadão nas costas quando nos despedimos. E não foi a paga pelos calduços que levei dele naquele oitavo ano. Foi mesmo por ter gostado de o ver, de saber que ele estava bem, que tinha seguido um bom caminho.

Bullying? Give me a break...

17/03/10

Espiral

Há um restaurante junto ao Jardim Cesário Verde, Estefânia, Lisboa, que é um dos mais antigos do género em Portugal. Que género? Vegetariano. Macrobiótico. Comida saudável.
Fui lá uma vez jantar. Só uma. Não voltei. A comida era boa e eu gosto de cozinha vegetariana, mas já explico melhor o porquê de não ter lá posto os pés novamente.

O Espiral - é esse o nome do restaurante - funciona num sistema de self-service, com tabuleiros castanhos como aqueles que eram distribuídos na fila do refeitório da escola secundária. Ou EB 2-3, como se diz hoje. Os clientes caminham pela zona delimitada, empurrando o tabuleiro sobre as barras de ferro polido e retirando as taças de sobremesa, talheres e bebidas enquanto caminham até aos pratos quentes.

Com a refeição paga, cada pessoa segue em direcção às mesas em busca de um lugar. Na noite em que lá fui, havia muitos. E havia um pianista a tocar ao canto da sala. Olhei para as outras mesas, quase todas elas ocupadas apenas por uma pessoa. Comiam de olhos postos no prato ou num livro aberto ao lado do tabuleiro. A maior parte delas eram magras, mas não tinham um ar saudável. Eram homens e mulheres com mais de 40 anos, alguns deles com mais 20 ou 30 que os 40.

Nesse dia de semana à noite, a música que o pianista tocava pareceu-me deprimente.
As pessoas que ocupavam as mesas pareciam-me deprimidas.

Bem sei que a carne alegra a vida, mas não pode ser essa a única explicação para tanta tristeza e auto-análise perante um prato de tofu e um sumo de beterraba. Deu-me vontade de abanar cada uma daquelas pessoas, falar com elas e perguntar-lhes o porquê de tanto silêncio. O que é que estava para lá de cada um dos comensais?

A espiral de sentimentos nunca me convenceu. E o Espiral também não.
Vegetariano sim, vegetal não.

22/02/10

Perto da vista

42.
300 000.

A proximidade é, de facto, o factor essencial para mexer com a dor.
As cheias na Madeira provocaram, até este momento, 42 mortos. E ainda 17 pessoas estão desaparecidas.

No Haiti, as últimas estimativas apontam para os 300 mil mortos. A nossa comunicação social já pouco fala do que se passa nas Caraíbas. As atenções estão viradas para a Pérola do Atlântico, aquele irritante chavão usado vezes sem conta desde sábado. Acreditem, não é demagogia. É mesmo assim. Faz parte da natureza humana preocupar-se mais com aquilo que está perto.
E será sempre assim.

A relativização dos sentimentos passa pela proximidade.
Seja na morte ou no amor.

14/01/10

Não gosto do Haiti

Aruba

Nunca gostei.
Provavelmente é porque nunca lá estive. Ou então, se já lá tivesse estado ainda gostaria menos. Não sei, mas não é isso que vem ao caso.

Eu não gosto do Haiti. Há pessoas, locais e países que nos inspiram confiança e dão um bom feeling. O Haiti não me faz nada disso. Nunca fui à Mongólia, mas não tenho nada contra. Não conheço o Paraguai, mas nutro alguma simpatia pelo país e pelos seus habitantes. E Vanuatu? Também nunca lá estive, mas gostaria um dia de lá ir. Com o Haiti é diferente: É como a Somália ou a Coreia do Norte, não gosto. E isto é puramente subjectivo. Tenho as minhas razões.

Cresci a ouvir falar do Haiti como um país sem lei, com crimes violentos, com uma ditadura sangrenta, com hábitos religiosos exacerbados, com a mística do vudu sempre presente.

Em 1998 visitei a República Dominicana e constatei que a prostituição feminina era oriunda do outro lado da fronteira da ilha Hispaniola. Do Haiti, portanto. Em conversa com os locais, percebi que uma das suas grandes preocupações eram os haitianos. Achei que era um exagero, apesar de já na altura não nutrir simpatia pelo Haiti.

Há dois anos, voltei à ilha Hispaniola. As preocupações dos dominicanos com os haitianos eram as mesmas: violência, crime, prostituição, sida. Continuei a não gostar do Haiti.

Agora, a catástrofe.
São perdas irreparáveis, as humanas. Dezenas ou centenas de milhar de vítimas mortais e milhões de desalojados são a primeira face do drama. Vão seguir-se as epidemias, os saques, a violência.

Um país que nunca viu a luz ao fundo do túnel pode encontrar na maior catástrofe natural da sua História, a saída que nunca soube aproveitar. Ou melhor, que os seus dirigentes, de Papa Doc Duvalier a Baby Doc Duvalier, nunca deixaram que fosse aproveitada. As centenas de milhões de dólares investidos no país ao longo de décadas não serviram para nada, a não ser para o enriquecimento dos seus dirigentes corruptos. Agora, e depois de uma Guerra Civil, em 2004, em que as matanças se repetiram e os problemas continuaram, o Haiti tenta fazer aquilo que nunca conseguiu: tornar-se um país a sério.

12/01/10

Espécies ameaçadas

Pirenópolis, Brasil


Começa hoje a ser comemorado o Ano Internacional da Biodiversidade. Mas não há muito para festejar. De acordo com a União Internacional para a Conservação da Natureza, das 47 677 espécies vegetais e animais identificadas no planeta, 17 291 estão ameaçadas de extinção. Entre elas contam-se o gato pescador de Java e Sumatra, a rã de orelhas negras de Madagáscar e a libélula gigante dos Camarões. A preocupação prende-se também com o lagarto de Panay, Filipinas e a zebra de Grévy, que pode ser encontrada na Etiópia, como pode ser comprovado no site do jornal francês Libération.

Da lista não constam os habitantes humanos de Java e Sumatra que vivem com menos de um dólar por dia, as crianças prostitutas exploradas pelos turistas franceses em Madagáscar, os trabalhadores em regime de quase escravatura dos Camarões, as centenas de camponeses filipinos que vendem um dos rins para sobreviver ou as crianças subnutridas da Etiópia.

Não estão na lista, mas era bom que fossem cada vez em menor número.

08/01/10

Cale-se para sempre

Quarto de hotel em Thorshavn, Ilhas Faroé


Nas últimas Legislativas, foram eleitos os representantes dos portugueses na Assembleia da República.

Dos programas que foram a votos, partidos houve que fizeram referência ao desejo de aprovar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Dos mesmos programas faziam parte outras questões fracturantes nas áreas da Educação, da Economia ou da Segurança Social. Bastava lê-los com atenção para saber o que cada um dos partidos (PS, PSD, CDS-PP, BE e PCP) tinha em mente para esta legislatura.

Hoje, o casamento homossexual está em debate no Parlamento. Como é sempre bom em democracia, há vozes contra e vozes a favor. Entre aqueles que não concordam com a união de papel passado entre pessoas do mesmo sexo, existem os que querem referendar o direito de os homossexuais casarem. Querem ouvir os portugueses sobre este assunto.

Os portugueses já foram ouvidos. Aconteceu nas Legislativas. Deram a maior parte dos votos aos partidos que aprovam o casamento entre pessoas do mesmo sexo. A decisão passa agora pelos nossos representantes na Assembleia da República. Convém que, de vez em quando, eles também façam alguma coisa e não se demitam das suas funções. Na teoria, foi para isso que foram eleitos.

06/01/10

Bonito serviço

Chapada dos Veadeiros, Brasil

Ironia.

Diz o dicionário da Porto Editora que se trata de uma "forma de humor que consiste em dizer o contrário daquilo que se pretende dar a entender". A mesma fonte fala de uma "figura de estilo que veicula um significado contrário daquele que deriva da interpretação literal do enunciado". Caracteriza-a também como "sarcasmo" ou "zombaria".

Abuso frequentemente do uso desta forma de comunicação. Faz parte do pacote, vem de série. Não é um extra que pode ou não ser adquirido quando se compra o produto.

Muitas vezes isso é um problema. Ou melhor, durante a fase de adaptação, a coisa aguenta-se, até se acha alguma graça. Mas com o uso repetido, a ironia cansa. Torna-se difícil de identificar.

Frequentemente, aquilo que parece não é. E vice-versa. A ironia pode arrancar muitos sorrisos, mas também pode não o fazer. Quando assim é, transforma-se numa arma contra o atirador. E pior do que atirar ao lado, só mesmo o cartucho rebentar na cara. A pólvora leva tempo a sair. Entranha-se.


Coração de papel

Aeroporto para OVNIs, Alto Paraíso, Brasil


Pelo segundo dia consecutivo, o jornal francês Le Monde não chegou às bancas.
O motivo é a greve dos funcionários da publicação ligados à impressão. Reivindicam, como é quase sempre o caso em situações de greve, melhores condições profissionais.
A direcção do jornal disponibiliza gratuitamente toda a edição na sua versão online.

Os amantes da edição impressa, grupo em que me incluo, ficam a perder, mas a grande fatia de leitores que recorrem à Internet não sentem sequer a diferença. O futuro tem destas coisas, está a relativizar o impacto do papel.

Chegará o dia em que vai ser um bem de luxo. Não só pela escassez da matéria-prima e pela preservação das árvores, mas também pelas exigências de uma cidade evoluída tecnologicamente. Têm dúvidas? Também os E-books se vendem cada vez mais.

Gosto de ficar com as pontas dos dedos sujas quando folheio um jornal e recortar notícias que me interessam.
Dá-me gozo dobrar as páginas dos livros, fazer apontamentos e sublinhar frases que considero importantes.

De jornais e livros em formato digital não consigo tirar o mesmo gozo, mas há uns anos também não gostava de inventar textos sem ser com caneta e papel e hoje não me vejo a fazê-lo de outra forma que não através de um computador.

05/01/10

200 mil

Essaouira, Marrocos, Junho de 2008

Onze anos e três meses passam num instante.
Levam mil metros a recordar.

Tirando a família e três amigos, esta é a minha relação mais estável e duradoura de sempre. A explicação é simples: a outra parte não se cansa de mim, não me deixa ficar mal e não espera que eu seja algo que nunca fui. Em contrapartida, eu pouco exijo, não lhe critico os defeitos e não quero que seja algo que nunca foi.

Começámos em Setembro de 1998. Estava calor. Fui apanhado de surpresa pela forma como tudo foi tão rápido. Adaptámo-nos como almas gémeas. Assim é quando a paixão manda mais que o amor. Isto depois passa, lembro-me de ter pensado. Mas não. Não passou. Mesmo onze anos e três meses depois, continuo a gostar de cada marca, de cada momento, de cada recordação. Os momentos maus foram poucos, muito poucos, daqueles que nem chegam para contar.

Fomos a Marrocos sem mapa na mão e sem nunca lá termos ido antes. Percorremos a Europa à descoberta e conhecemos Portugal como ninguém. A areia da praia e a terra do campo serviram-nos para irmos mais longe, para nos conhecermos melhor. Mesmo quando entrámos por caminhos sem saída, soubemos dar a volta por cima. Assim se faz uma relação, não é?

Na noite do Dia de Natal, passei mil metros a recordar o que fizemos e onde fomos, como lá chegámos e o que somos. Fizemos 200 mil quilómetros juntos. Não me deixaste ficar mal. E espero que nunca o tenha feito.

Venham mais 200 mil quilómetros, onze anos e três meses.