Porquê? Why?

Há histórias que têm que ser contadas.
Há exemplos que têm que ser seguidos.
Há personagens que têm que ser desvendadas.
E nós merecemos um jornalismo diferente que nos mostre que ainda vale a pena.



30/09/10

Corta e cose

Hoje, andei trinta e tal anos para trás.
Uma pequena cirurgia levou-me a um hospital. 
Foi agendada a semana passada e hoje começou com meia hora de atraso. 
Sim, foi num hospital privado. 

Nem 20 minutos estive deitado. Nem as calças ou os ténis tive que tirar. Só levei a touca na cabeça e as protecções para os pés. Já ia medianamente anestesiado de casa - não é nenhuma piada com álcool, eram dez da manhã - com uma pomada para passar na área afectada. Deitei-me, ele passou-me um spray desinfectante, depois Betadine e saca da agulha: "Lembra-se que eu disse que era só uma picada?", perguntou. 
Sim, disse-lhe.
"É esta", continuou enquanto me picava a pele em vários locais. Virou-se para trás, pediu para preencherem uns papéis, clamou por um bisturi, trocou meia dúzia de palavras com as enfermeiras e com a médica assistente e voltou à carga: "Isto assim, dói-lhe?" 
Não, disse-lhe enquanto fitava o típico candeeiro sobre a mesa de operações, parecido com o do dentista, mas maior. Foi isso que me fez voltar trinta e tal anos atrás.

Devia ter uns três anos ou coisa assim. Brincava num canteiro de flores sem as ditas, só com terra. Era em mármore e ainda hoje faz a divisão entre os prédios na rua dos meus pais, na praceta com nome de poeta que me ajudou a vir para as Letras. Tropecei, caí e parti a cana do nariz na esquina do mármore. Doeu. E só me lembro das luzes, do candeeiro do hospital, da agulha e do fio a passar do lado esquerdo para o direito do nariz. Foi a última vez que estive num hospital para ser cosido. Até hoje.

Não pensei no papel do Serviço Nacional de Saúde. Não me importei com isso. Felizmente tenho um seguro que me permitiu ser consultado e intervencionado por menos de 60 euros. Tenho sorte. Levou uma semana. Daqui a outra volto lá para uma consulta de pós-operatório.

"Pronto, Ricardo, já está", diz-me ele depois de ter dado uns quantos pontos na pele e de termos falado do aumento do IVA para 23% ao ritmo do fio e da agulha. "Então e essas férias?", perguntei-lhe. "Agora estou a pensar em Bali". Na semana passada, quando nos vimos pela primeira vez, questionou-me sobre as Maldivas. Disse-lhe que era melhor não, a não ser que fosse praticante de mergulho e quisesse passar uma semana romântica.

Um dia, o Serviço Nacional de Saúde não vai ser assim.
Mas era bom que fosse.

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