Porquê? Why?

Há histórias que têm que ser contadas.
Há exemplos que têm que ser seguidos.
Há personagens que têm que ser desvendadas.
E nós merecemos um jornalismo diferente que nos mostre que ainda vale a pena.



16/11/10

Carlos Teotónio Pereira

                                                                         O Independente, 2001

Acordei sobressaltado.
Pouco passava das nove da manhã, talvez menos. Estava a dormir há três ou quatro horas.
"Tou, Ricardo... tenho uma coisa muito triste para te dizer. O Carlinhos faleceu".
Nem teve um acidente, nem está muito mal, nem houve um desastre, nada. Não! Faleceu. Morreu.
Pá!
Chapada na cara, murro no estômago, puxar o tapete, desabar o Mundo, todas as frases feitas são ridículas. Não havia outra maneira de o dizer, não há forma correcta de se dar uma notícia assim. Não se deseja a ninguém ter que o fazer. Dizer a alguém que um dos seus melhores amigos já não está vivo é um pontapé nos tomates. Anos mais tarde, calhou-me a dor de ter que dizer a um pai que o filho tinha morrido.
Não há forma correcta de se dar uma notícia assim. Não se deseja a ninguém ter que o fazer.

Em 2002, gastávamos as recentes e escassas notas de euro que recebíamos em noites de fecho do jornal que se prolongavam quase até de manhã. O Mundo tinha mudado: Bin Laden era o inimigo público número um, Daniel Pearl, do Wall Street Journal, tinha sido sequestrado e barbaramente assassinado, Milosevic estava a ser julgado em Haia, Savimbi deixara de ser um problema em Angola, Timor acabava de se tornar independente, Lula conseguira finalmente chegar ao poder e os EUA invadiam o Afeganistão.
De tudo isto falámos à mesa da Tasca do Careca, nos almoços no Beiradouro ou nas escapadelas para as escadas de incêndio do prédio da Almirante Reis. Sempre com opiniões contrárias e discussões acaloradas que terminavam em gargalhada. Terminavam com a gargalhada dele.

Ele e eu éramos água e azeite. Tínhamos tudo para não nos misturarmos e conseguimos iludir a química ou a física ou lá o que é que separa os líquidos. De um lado, uma educação católica, conservadora, de Direita, do antigamente, uma família influente. Do outro, eu.
Unimo-nos por uma secretária, por um computador, pelo prazo de fecho, pelos caracteres para entregar, pelas tricas da redacção, pelas conquistas do coração, pelas loucuras até às tantas, por uma amizade sem classes, pura.

"A ver se combinamos alguma coisa esta semana..."
"Claro, meu querido!"
E mais umas gargalhadas valentes com insultos terríveis à masculinidade um do outro.
"Liga-me".

Nunca mais lhe telefonei. Não houve tempo.
Não consigo apagar o número da memória do meu telemóvel - Carlinhos Teot: 919302571.
Passam hoje exactamente oito anos.
Em 2002, o Óscar de Melhor Filme foi para A Beautiful Mind.
Bate certo.